Um dos indicativos que nós, jornalistas, estamos envelhecendo (acabo de inventar essa) é o apego, até há pouco impensável, aos adjetivos em determinadas circunstâncias.
É como se, de alguma forma, gradativamente as juntas de nossos dedos fossem cansando de reconstruir as frases e optasse por essas aparentes (usar adjetivos com propriedade é privilégio de poucos) muletas da língua.
O fato é que não consigo pensar no livro O solista (Nova Fronteira, 2009), de Steve Lopez, que acabo de ler, sem associar um "inquietante" às percepções que ainda borbulham em minha mente.
Trata-se, pra quem não sabe, e sem querer estragar o gosto da descoberta de ninguém, do relato da convivência entre Lopez, um conceituado (olha ele aí de novo...) colunista do Los Angeles Times com um mendigo chamado Nathaniel Ayres.
Na verdade, mais que um mendigo: um músico erudito que poderia ter tido uma carreira brilhante não fosse a esquizofrenia.
Enredo pra lá de parecido, diga-se, com o do O segredo de Joe Gould (Cia das Letras, 2003), de Joseph Mitchell.
(Gould, cês lembram, era um mendigo excêntrico que vivia no Greenwich Village, bairro boêmio de Nova York, conhecido por estar escrevendo um livro chamado "História oral do nosso tempo". Já Mitchell era repórter da The New Yorker quando escreveu sobre ele, mas essa é outra história.)
Bueno, o inquietante lá de cima fica por conta do fato de a história de Lopez ser diferente da de Mitchell não apenas pelo primor estilístico do primeiro e a eventual falta de habilidade do segundo: trata-se, antes, da narração de uma longa imersão do jornalismo em campos outros.
O que temos aqui é o rompimento de muitas das fronteiras que nós, jornalistas, muito raramente cruzamos, movidos por medos, preceitos e normas de conduta ancestrais.
Isso se verifica em O solista, por exemplo, quando, mais que contar uma história, o jornalista relata sua imersão na história; o que fez para ajudar alguém que, a seus olhos, precisava ser ajudado, valendo-se para isso inclusive das páginas de seu jornal.
Usualmente nós, jornalistas - e penso neste momento em gente como Günter Wallraff e seu Cabeça de Turco -, mesmo vivendo histórias, raramente somos protagonistas delas.
Mesmo quando nos colocamos no papel de personagens, é mais ou menos como na literatura, ou seja, no sentido de compor o cenário, raramente para interferir, por nossas ações, nesta ou naquela realidade.
É sobre isso que fala O solista, ainda que sob as vestes de uma história, digamos assim, tão inquietante quanto um adjetivo.
24 de fev. de 2010
O solista
Postado por
Demétrio de Azeredo Soster
às
22:01
Marcadores:
dicas de leitura,
O Solista,
Steve Lopez
Assinar:
Postar comentários (Atom)
2 comentários:
Concordo tanto que já escrevi uma resenha exatamente sobre isso - a sensibilidade jornalística de Lopez e Mitchell. Lembra, professor?
E também concordo - nesse ponto a minha análise não chegou - que o texto d'"O Solista" tem suas fragilidades. Achei muito mais próximo de um relato emocionado e por isso menos rigoroso (importante: rigor não exclui criatividade).
Claro que lembro de sua resenha, Pedro. O fato é que salta aos olhos a semelhança entre a obra de Mitchell e a de Lopez, bem como as diferenças entre uma e outra.
Penso, cá comigo,que Lopez, mais que um personagem, deparou-se com uma tremenda batata-quente ao encontrar seu mendigo.
Tipo assim: como não escrever sobre ele? E, em a história sendo contada, como fugir das semelhanças?
Considerando que a roda foi inventada há muito, por fim, acho que Lopez fez o que tinha de fazer. Ou seja, contou sua história.
Postar um comentário